* Miriam Halfim
Com a chegada de Pessach, a história da saída dos judeus do Egito, sua longa jornada de 40 anos pelo deserto até que lhes fosse permitido adentrar a terra do leite e do mel, toda sua luta pela liberdade e dignidade, que é hoje algo intrínseco ao povo de Israel, volta-me à mente. Na verdade, a consciência de meu judaísmo é ininterrupta, parte inerente ao meu ser; mas, nesses dias que antecedem a páscoa judaica ainda se tornam mais fortes.
Falo de cadeira, por amor à nossa antiga e palpitante história. Há muito tempo venho rondando Miriam, a irmã de Moisés, e pensando em contar o êxodo do Egito sob seu ponto de vista. Em 2013, o sonho virou realidade. A figura modesta da irmã de Moisés criou vida. E pude reiterar sua importância, todo o valor que tem uma figura feminina na história de nosso povo.
Os judeus conheceram, em seus quase 6000 anos de saga, apogeu e inferno. Há 66 anos, emergiu da extrema dor para, em Israel, com o beneplácito oficial da ONU, construir um país vibrante, onde a Educação tem lugar primordial, com ela conquistando o reconhecimento dos países adiantados. Que orgulho ler que o Brasil está, finalmente, usando oficialmente a tecnologia israelense na agricultura. Apenas reafirma minha crença de que os homens nascem para se ajudar e aprimorar um ao outro e me leva a torcer para que o Brasil se desenvolva mais rapidamente. O resto, o resto é resto, não conta, e passará.
Por outro lado, a notícia que nos chega num jornal de domingo, sobre a bigamia de um judeu ortodoxo ao se casar com uma brasileira, é de entristecer. Exemplifica o ditado de Elie Wiesel, ao afirmar que alguns judeus podem nos decepcionar, mas não o judaísmo. Meir kin, o médico que, mesmo se recusando a dar o ‘get’ (divórcio judaico necessário à mulher, a fim de ser considerada livre da união) para sua ex-esposa, consegue celebrar seu novo casamento, envergonha o povo. Mas, graças a Deus, homens como ele não proliferam aos borbotões em nosso meio. Ao contrário, secam feito o deserto.
Sempre digo que a ortodoxia é ruim, em qualquer religião. O judaísmo, quase seis vezes milenar, já teve tempo suficiente para se aprimorar e expurgar excessos. Ninguém, eu tenho certeza, é superior a ninguém. Quando um correligionário olha para um semelhante de cima para baixo, não é porque o seu interlocutor lhe seja inferior, mas sim porque ele mesmo se valoriza tão pouco que apenas depreciando o outro poderá ter a ilusão de ser melhor do que realmente é: um pobre diabo que requer terapia.
A triste notícia lembrou-me uma amiga, já falecida, que lutou muito para obter o ‘get’ de seu marido, há mais ou menos 30 anos. Estava grávida de oito meses ao descobrir que o marido havia engravidado - ao mesmo tempo - a esposa de um casal amigo, com quem saíam semanalmente. Ela chorou muito, mas decidiu que o fato ofendia sua dignidade e a de suas outras filhas, e pediu o ‘get’. Como sua família não vivia no Rio, e éramos muito próximas, eu a acompanhei nas várias visitas ao rabino, quando expunha seu caso diante dele e solicitava a solução. Quando a resposta veio, chegou acompanhada de uma conta altíssima. O rabino lhe disse, muito sério, que casar era fácil e barato, mas obter um ‘get’ era outra coisa. E caro, muito caro. Como os judeus se conhecem quase todos, imaginei que o fato de o pai de minha amiga ser um comerciante bem sucedido no sul decerto influenciou o montante que a autora do pedido devia pagar para se livrar do marido adúltero.
Ela pagou o preço. Alguns anos mais tarde, dois relacionamentos após, minha amiga veio a falecer, ainda jovem e muito bonita, e seu ex-marido comentou, quando nos encontramos pouco após o velório: Bem, ela nunca soube escolher homem, mesmo. Livrei-me dele rapidamente e pensei: Decerto fala em seu próprio nome. Também houve tempo em que se lia nos jornais sobre mulheres casadas com homens ortodoxos sendo levadas ao suicídio diante de uma realidade que não suportavam e sem o vislumbre de uma saída. E filmes, e livros. A questão parece constante no grupo ortodoxo, dado o número de casos em andamento citado no noticiário.
Eu só creio na Educação e no equilíbrio. E em uma vida com dignidade. Entendo - não me cabe discutir aqui, o desespero de pessoas que, ao escolherem o suicídio, não buscam a morte (todos querem viver), mas pensam ter encontrado uma saída para a dor que as consome. Creio, porém, que há solução para tudo, à exceção da morte. E viver é uma benção.
Um ditado judaico que lemos em Pessach diz que o filho sábio nos alegra, o tolo nos entristece, o mau nos envergonha. A julgar pelo histórico de Meir Kin, ele envergonha não apenas seus pais, se ainda estiverem vivos, mas também seu filho, exposto em meio a tanta sujeira; e, a julgar pelos fatos narrados pela esposa abandonada como ‘agunah’ para poder extorqui-la, segundo ela, o sujeito envergonha também a ela e à comunidade a que pertence. Até a nós, que apenas lemos tamanha desfaçatez.
Estamos próximos de Pessach. Esperemos que a chegada de nossa páscoa ilumine os corações em trevas e os leve por caminhos em direção à liberdade e à dignidade. Que tais caminhos sejam finalmente alcançados por todos que realmente os buscam com seriedade e dignidade – e tragam alegria e paz para todos os homens de bem.
* Miriam Halfim é escritora
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