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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O Leitor Fiel

*Sheila Sacks

“A leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno” (G.W.F. Hegel, filósofo do século 19 e redator do ‘Bamberger Zeitung’, de 1807 a 1808)

Na obra “A Cabala e o seu Simbolismo”, o historiador e professor Gershom G. Scholem (1897-1982) observa o caráter conservador e tradicional do crente em relação à autoridade religiosa que o guia. Esse fato se deve, de acordo com Scholem, à educação e à herança antiga que carregam dentro de si. “Ele cresceu dentro do quadro de uma autoridade religiosa reconhecida e, mesmo quando começa a olhar independentemente para as coisas e procurar seu próprio caminho, todo o seu pensar e especialmente sua imaginação continuam permeados de elementos tradicionais”, explica.
Um dos maiores estudiosos contemporâneos das correntes místicas do judaísmo, Scholem procura referendar a sua tese com as seguintes indagações: “Por que um místico cristão sempre tem visões cristãs, e não as de um budista? Por que um budista sempre vê as figuras do seu próprio panteão, e não, por exemplo, Jesus ou Maria? Por que um cabalista, em busca de iluminação, se encontra com o profeta Elias, e não com a figura de um mundo estranho? A resposta é, evidentemente, que a expressão da experiência de um místico é por ele imediatamente transposta para símbolos de seu próprio mundo, mesmo que os objetos destas experiências sejam essencialmente iguais.”
A fidelidade do crente para com a sua religião encontra no mundo secular um paralelo análogo e curioso quando se analisa a relação, muitas vezes paranoica e até fundamentalista, do leitor com o seu jornal. Similar a um líder espiritual, o jornal o informa, orienta e o aconselha sobre temas relevantes, sempre sob uma determinada ótica – a sua visão –, levando o leitor a assimilar uma linguagem e uma experiência de conceitos e ideias que o tornam conservador e até impermeável a outros pontos de vista.
Espaço dos leitores
Ainda que variáveis possam ocorrer, essa constatação pode ser facilmente aferida no espaço que o jornal concede à opinião dos leitores, cujos comentários e argumentações nos remetem, inevitavelmente, ao pensamento editorial/político do jornal. A retórica utilizada pela imprensa é reproduzida, muitas vezes inconscientemente, por seus leitores, que se transfiguram em porta-vozes informais dos jornais, justamente nesses raros e valiosos canais abertos para o que se convencionou intitular de opinião pública.
A doutrinação subliminar que a imprensa tem infundido a seus leitores ao longo do tempo tem criado a figura do leitor fiel, aquele que crê e segue incondicionalmente o ponto de vista editorial do jornal, mesmo sem ter consciência do fato. Assim como a religião é uma tradição familiar que se perpetua através de gerações, o jornal também se tornou uma tradição familiar que atinge todos que o acompanham. Dessa forma, o espaço dos leitores nos jornais estaria circunscrito a um único discurso,  a uma opinião direcionada que não se enquadraria na diversidade que o termo “opinião pública” engendra.
Despolitização e desencanto
Em 2010, em um seminário internacional em Lisboa sobre “Mídia, Jornalismo e Democracia”, Thomas Patterson, professor da Universidade Harvard na disciplina “Governo e Imprensa”, surpreendeu a plateia ao afirmar que a mídia americana, apesar da grande quantidade de notícias, não tem contribuído para criar cidadãos informados e engajados no processo democrático. Autor de vários livros sobre a influência da mídia na participação política, Patterson acredita que o jornalismo crítico do jeito que vem sendo praticado enfraquece o interesse das pessoas pela política. “Jornalismo e democracia partilham um destino comum”, assinala.  “Sem instituições democráticas e sem espírito democrático, os jornalistas ficam reduzidos a propagandistas e entertainers.
Visão semelhante à do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1939-2002), para quem o mundo jornalístico com seus mecanismos produz e impõe “uma imagem cínica do mundo político, espécie de arena entregue às manobras de ambiciosos sem convicções, guiados pelos interesses ligados à competição que os opõe”. Bourdieu, autor de “Anatomia do Gosto”, alertava que esse tipo de exposição concorre para produzir um efeito de despolitização e desencanto com a política.
Paladinos do bem
Com um discurso parecido, o veterano jornalista Lawrence Grossman, que presidiu a rede de rádio e TV americana NBC News de 1984 a 1988, culpa a mídia por “contribuir enormemente para o crescente cinismo do público, para o seu afastamento da política e para a desconfiança em relação ao governo”. Autor da obra “Eletronic Republic”, Grossman destaca que o jornalismo atual se concentra quase exclusivamente nos erros do governo.
Por outro lado, o professor de Comunicação da Universidade de Illinois, Robert W. McChesney defende uma mídia pública, cívica e comunitária, regida por investimentos governamentais. Em seu livro “Morte e Vida do Jornalismo Americano” (2010), escrito em parceria com John Nichols, ele destaca que é inteiramente irreal esperar que a motivação do lucro proporcione algo próximo do nível de jornalismo necessário para uma cidadania informada e para um governo democrático.
Logo, nas atuais condições, dificilmente o leitor alcançará um grau relevante de independência em suas opiniões, basicamente formadas por crenças construídas a partir de um aforismo que se convencionou rotular de “interesse público”. Para o psicólogo americano Michael Shermer, autor de “Cérebro & Crença”, nosso entendimento da realidade depende das crenças que formamos sobre ela. “Há um mundo verdadeiro lá fora, mas nosso cérebro não possui necessariamente uma correspondência com esse mundo de verdade”, ressalta. Um descompasso habilmente percebido e manipulado pelos gigantes da mídia que se utilizam, por exemplo, da milenar crença do mal para consubstanciar sua imagem de paladinos do bem e da moral pública nas sucessivas cruzadas que promovem contra aqueles que são a sua representação dos dragões da maldade.
*Sheila Sacks é jornalista.

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Um comentário:


  1. Querida articulista seu texto me parece muitíssimo importante. Vou fazer algumas ponderações no sentido de alimentar uma discussão sobre este assunto.
    Thomas Patterson, Robert W. McChesney, Michael Shermer e Pierre Bourdieu fazem declarações com as quais concordo inteiramente e gostaria de ouvir as opiniões dos leitores sobre o que dizem Patterson e John Nichols.
    No entanto, friso que as opiniões deles são em relação a um ambiente muito diverso do nosso. No Rio de Janeiro só temos o Oglobo como jornal, e em função deste fato, a enorme maioria lê o mesmo por falta de opção, e não por ser um “leitor fiel”
    Sheila discordo totalmente do que escreveste em relação ao espaço do leitor:
    “Espaço dos leitores
    “Ainda que variáveis possam ocorrer, essa constatação pode ser facilmente aferida no espaço que o jornal concede à opinião dos leitores, cujos comentários e argumentações nos remetem, inevitavelmente, ao pensamento editorial/político do jornal.”
    O que acontece diferente do blog do Jacob, posso afirmar porque o conheço muito bem, os editores do Oglobo só publicam o que o Globo quer, as vezes até contra a posição do Jornal (aparente isenção), comprovo pois um amigo meu, tem inúmeras cartas publicadas, muitas vezes seu texto cortado em algumas palavras, e jamais uma carta criticando diretamente a Dilma foi publicada.
    Novamente volto a dizer a ideia é começar um debate via o Blog.

    Fraim Hechtman

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