*Sheila
Sacks
“A
leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno” (G.W.F. Hegel,
filósofo do século 19 e redator do ‘Bamberger Zeitung’, de 1807 a 1808)
Na
obra “A Cabala e o seu Simbolismo”, o historiador e professor Gershom G.
Scholem (1897-1982) observa o caráter conservador e tradicional do crente em
relação à autoridade religiosa que o guia. Esse fato se deve, de acordo com
Scholem, à educação e à herança antiga que carregam dentro de si. “Ele cresceu
dentro do quadro de uma autoridade religiosa reconhecida e, mesmo quando começa
a olhar independentemente para as coisas e procurar seu próprio caminho, todo o
seu pensar e especialmente sua imaginação continuam permeados de elementos
tradicionais”, explica.
Um dos
maiores estudiosos contemporâneos das correntes místicas do judaísmo, Scholem
procura referendar a sua tese com as seguintes indagações: “Por que um místico
cristão sempre tem visões cristãs, e não as de um budista? Por que um budista
sempre vê as figuras do seu próprio panteão, e não, por exemplo, Jesus ou
Maria? Por que um cabalista, em busca de iluminação, se encontra com o profeta
Elias, e não com a figura de um mundo estranho? A resposta é, evidentemente,
que a expressão da experiência de um místico é por ele imediatamente transposta
para símbolos de seu próprio mundo, mesmo que os objetos destas experiências
sejam essencialmente iguais.”
A
fidelidade do crente para com a sua religião encontra no mundo secular um
paralelo análogo e curioso quando se analisa a relação, muitas vezes paranoica
e até fundamentalista, do leitor com o seu jornal. Similar a um líder
espiritual, o jornal o informa, orienta e o aconselha sobre temas relevantes,
sempre sob uma determinada ótica – a sua visão –, levando o leitor a assimilar
uma linguagem e uma experiência de conceitos e ideias que o tornam conservador
e até impermeável a outros pontos de vista.
Espaço dos leitores
Ainda
que variáveis possam ocorrer, essa constatação pode ser facilmente aferida no
espaço que o jornal concede à opinião dos leitores, cujos comentários e
argumentações nos remetem, inevitavelmente, ao pensamento editorial/político do
jornal. A retórica utilizada pela imprensa é reproduzida, muitas vezes
inconscientemente, por seus leitores, que se transfiguram em porta-vozes
informais dos jornais, justamente nesses raros e valiosos canais abertos para o
que se convencionou intitular de opinião pública.
A
doutrinação subliminar que a imprensa tem infundido a seus leitores ao longo do
tempo tem criado a figura do leitor fiel, aquele que crê e segue
incondicionalmente o ponto de vista editorial do jornal, mesmo sem ter
consciência do fato. Assim como a religião é uma tradição familiar que se
perpetua através de gerações, o jornal também se tornou uma tradição familiar que
atinge todos que o acompanham. Dessa forma, o espaço dos leitores nos jornais
estaria circunscrito a um único discurso, a uma opinião direcionada que não se
enquadraria na diversidade que o termo “opinião pública” engendra.
Despolitização e desencanto
Em
2010, em um seminário internacional em Lisboa sobre “Mídia, Jornalismo e
Democracia”, Thomas Patterson, professor da Universidade Harvard na disciplina
“Governo e Imprensa”, surpreendeu a plateia ao afirmar que a mídia americana,
apesar da grande quantidade de notícias, não tem contribuído para criar
cidadãos informados e engajados no processo democrático. Autor de vários livros
sobre a influência da mídia na participação política, Patterson acredita que o
jornalismo crítico do jeito que vem sendo praticado enfraquece o interesse das
pessoas pela política. “Jornalismo e democracia partilham um destino comum”,
assinala. “Sem instituições democráticas
e sem espírito democrático, os jornalistas ficam reduzidos a propagandistas e entertainers.”
Visão
semelhante à do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1939-2002), para quem o
mundo jornalístico com seus mecanismos produz e impõe “uma imagem cínica do
mundo político, espécie de arena entregue às manobras de ambiciosos sem
convicções, guiados pelos interesses ligados à competição que os opõe”.
Bourdieu, autor de “Anatomia do Gosto”, alertava que esse tipo de exposição
concorre para produzir um efeito de despolitização e desencanto com a política.
Paladinos do bem
Com um
discurso parecido, o veterano jornalista Lawrence Grossman, que presidiu a rede
de rádio e TV americana NBC News de 1984 a 1988, culpa a mídia por “contribuir
enormemente para o crescente cinismo do público, para o seu afastamento da
política e para a desconfiança em relação ao governo”. Autor da obra “Eletronic
Republic”, Grossman destaca que o jornalismo atual se concentra quase
exclusivamente nos erros do governo.
Por
outro lado, o professor de Comunicação da Universidade de Illinois, Robert W.
McChesney defende uma mídia pública, cívica e comunitária, regida por
investimentos governamentais. Em seu livro “Morte e Vida do Jornalismo
Americano” (2010), escrito em parceria com John Nichols, ele destaca que é
inteiramente irreal esperar que a motivação do lucro proporcione algo próximo
do nível de jornalismo necessário para uma cidadania informada e para um
governo democrático.
Logo,
nas atuais condições, dificilmente o leitor alcançará um grau relevante de
independência em suas opiniões, basicamente formadas por crenças construídas a
partir de um aforismo que se convencionou rotular de “interesse público”. Para
o psicólogo americano Michael Shermer, autor de “Cérebro & Crença”, nosso
entendimento da realidade depende das crenças que formamos sobre ela. “Há um
mundo verdadeiro lá fora, mas nosso cérebro não possui necessariamente uma
correspondência com esse mundo de verdade”, ressalta. Um descompasso habilmente
percebido e manipulado pelos gigantes da mídia que se utilizam, por exemplo, da
milenar crença do mal para consubstanciar sua imagem de paladinos do bem e da
moral pública nas sucessivas cruzadas que promovem contra aqueles que são a sua
representação dos dragões da maldade.
ResponderExcluirQuerida articulista seu texto me parece muitíssimo importante. Vou fazer algumas ponderações no sentido de alimentar uma discussão sobre este assunto.
Thomas Patterson, Robert W. McChesney, Michael Shermer e Pierre Bourdieu fazem declarações com as quais concordo inteiramente e gostaria de ouvir as opiniões dos leitores sobre o que dizem Patterson e John Nichols.
No entanto, friso que as opiniões deles são em relação a um ambiente muito diverso do nosso. No Rio de Janeiro só temos o Oglobo como jornal, e em função deste fato, a enorme maioria lê o mesmo por falta de opção, e não por ser um “leitor fiel”
Sheila discordo totalmente do que escreveste em relação ao espaço do leitor:
“Espaço dos leitores
“Ainda que variáveis possam ocorrer, essa constatação pode ser facilmente aferida no espaço que o jornal concede à opinião dos leitores, cujos comentários e argumentações nos remetem, inevitavelmente, ao pensamento editorial/político do jornal.”
O que acontece diferente do blog do Jacob, posso afirmar porque o conheço muito bem, os editores do Oglobo só publicam o que o Globo quer, as vezes até contra a posição do Jornal (aparente isenção), comprovo pois um amigo meu, tem inúmeras cartas publicadas, muitas vezes seu texto cortado em algumas palavras, e jamais uma carta criticando diretamente a Dilma foi publicada.
Novamente volto a dizer a ideia é começar um debate via o Blog.
Fraim Hechtman